0

A LEI MARIA DA PENHA E SUAS REPERCUSSÕES NO DIREITO DO TRABALHO

Posted by Paulinha on 09:51 in
A LEI MARIA DA PENHA E SUAS REPERCUSSÕES NO DIREITO DO TRABALHO:
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS EFEITOS DO AFASTAMENTO DO LOCAL DE TRABALHO
DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU FAMILIAR


Felipe Antonio Lopes Santos
Advogado da Petrobras S/A e Professor de Direito do Trabalho,
Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho,
Relação dos trabalhos publicados anteriormente: “Execução trabalhista contra a Fazenda Pública e a desnecessidade de precatórios”, Revista do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte, e “Os efeitos vinculantes das ADIn’s e a relativização da coisa julgada na execução trabalhista”, Revista Justilex.

SUMÁRIO: 1 Aspectos iniciais; 2 A revolta contra as cestas básicas e a concretização da proteção estatal à violência familiar e doméstica - Lei nº 11.340/2006; 3 Afastamento do trabalho determinado pela justiça comum cível ou criminal - Invasão da competência atribuída à Justiça do Trabalho?; 4 Afastamento do trabalho - hipótese de interrupção ou suspensão contratual?; Conclusão; Referências bibliográficas.


1 - ASPECTOS INICIAIS
A Lei nº 11.340/2006, denominada “Lei Maria da Penha” completou um ano de vigência, porém as suas conseqüências trabalhistas ainda não estão completamente definidas pela doutrina e jurisprudência.
Assim, antes de se abordar os aspectos legais e suas repercussões jurídicas relacionadas ao Direito do Trabalho, faz-se necessária uma breve consideração acerca do conteúdo normativo contido na mencionada Lei Maria da Penha.

2 - A REVOLTA CONTRA AS CESTAS BÁSICAS E A CONCRETIZAÇÃO DA PROTEÇÃO ESTATAL À VIOLÊNCIA FAMILIAR E DOMÉSTICA - LEI Nº 11.340/2006
É sabido que a violência doméstica e, em especial, contra a mulher é considerada um problema delicado. Delicado porque, na grande maioria dos casos, o Estado mostra-se incapaz de proteger a vítima do seu ofensor, quando a violência ocorre num âmbito familiar ou doméstico.
Essa premissa, apesar de poder ser superada por técnicas ou normas repressivas da conduta do ofensor, baseia-se na inexistência de mecanismos capazes de evitar um possível ato de violência doméstica ou familiar, bem como de propiciar à vítima do ato de violência um ambiente doméstico ou familiar suficientemente seguro.
Isso porque, caso o agressor não fique recluso em estabelecimento prisional ou mesmo após o seu retorno à sociedade, é difícil imaginar a integral proteção do Estado a uma dessas vítimas, quando existem milhares delas espalhadas pelas comunidades. O Estado não é onipresente, apesar de dever ser.
Pois bem: não obstante a proteção constitucional à família, contida no art. 226, § 8º, da Carta Magna, tem-se que a legislação brasileira sobre violência doméstica não possuía dispositivo próprio que ensejasse a responsabilização do agressor, existindo, até há bem pouco tempo, somente a previsão acerca da punição ao crime de lesão corporal, cujo procedimento poderia ser de competência dos juizados especiais criminais, no caso de lesão corporal de natureza leve (art. 129, do Código Penal c/c art. 61, da Lei nº 9.099/1995).
Conforme afirmado por Camilo Pileggi, em artigo escrito sobre o assunto, a ineficiência do Estado em reprimir as condutas de violência doméstica ou familiar demonstrou-se por uma “onda de doações de cestas básicas”, baseada na transação penal realizada no âmbito de um processo criminal de competência dos juizados especiais criminais.
Segundo o mencionado autor, o que se observava era que havia uma certa banalização da doação de cestas básicas pelo ofensor, tendo em vista que essa medida não poria fim ao risco social vivido pela vítima, que continuaria a viver com o ofensor ou estaria a ele vulnerável, na maioria dos casos. Essa, a revolta dos jurisdicionados, em especial das mulheres, que necessitavam de uma solução eficaz para a questão da violência.
A legislação brasileira, com efeito, editou normas legais no sentido de ampliar a proteção à vítima. Exemplos disso foram as Leis nºs 10.455/2002 e 10.886/2004. A primeira permitiu que fosse determinado o afastamento do ofensor da convivência com a vítima. A segunda, por sua vez, admitiu que a violência doméstica é um crime específico, diferentemente da lesão corporal simples, e aumentou a pena anteriormente estipulada.
No entanto, somente com a edição da Lei nº 11.340/2006 é que foram criados mecanismos capazes de assegurar a efetiva proteção às vítimas de violência doméstica e familiar. Trata-se, como se vê, de uma lei protetiva dos interesses das vítimas de violência doméstica ou familiar, a qual pode assumir a forma de violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral (art. 7º), no âmbito de uma unidade doméstica, de uma família ou de qualquer relação de afeto (art. 5º).
No rol das medidas protetivas de urgência que podem ser concedidas, mencionam-se: suspensão da posse ou restrição do porte de armas do ofensor, nos termos da Lei nº 10.826/2003; afastamento, do ofensor, do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; proibição, do ofensor, de se aproximar da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; proibição de contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; proibição, do ofensor, de freqüentar determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; prestação de alimentos provisionais ou provisórios (art. 22).
Todavia, a significativa alteração da Lei nº 11.340/2006 foi afastar a aplicação da Lei nº 9.099/1995 nos casos de crimes de violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 41), bem como vedar, expressamente, a utilização de cestas básicas ou outras espécies de prestação pecuniária como forma de solução desses conflitos (art. 17).
Além das medidas urgentes de proteção, é preciso destacar as seguintes medidas de assistência previstas na Lei Maria da Penha: (a) a inclusão da mulher em situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal; (b) acesso prioritário à remoção, quando servidora pública, integrante da administração direta ou indireta; e (c) a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses (art. 9º, § 2º e incisos).
É sobre essa última medida de assistência prevista na norma em questão, isto é, sobre o afastamento do trabalho, com a manutenção do vínculo por até seis meses, que serão feitas algumas considerações, procurando posicionar essa norma e seu conteúdo no plano jurídico-social, delineando sua natureza jurídica e demais circunstâncias que a envolvem.

3 - AFASTAMENTO DO TRABALHO DETERMINADO PELA JUSTIÇA COMUM CÍVEL OU CRIMINAL - INVASÃO DA COMPETÊNCIA ATRIBUÍDA À JUSTIÇA DO TRABALHO?
A hipótese trazida pelo legislador, no sentido de possibilitar que a vítima se afaste do local de trabalho por determinado período é assim explicada pela doutrina de Eduardo Câmara:
“Tal afastamento pode se dar por necessidade de afastamento do lar (nos casos de violência doméstica ou familiar entre pessoas que convivam ou coabitem) impossibilitando a freqüência ao emprego, ou mesmo por necessidade de afastamento do ambiente de trabalho, por trabalhar a ofendida no mesmo local que o agressor (mesmo que não coabitem ex vi art. 5º, III, da Lei).”
Logo, percebe-se que a vítima de ato de violência pode necessitar se ausentar do seu local de trabalho, podendo ter de se instalar, provisoriamente, em local seguro do seu agressor, a fim de preservar sua integridade física e psicológica, como prevê o inciso II, do art. 35, da Lei nº 11.340/2006.
Nesse caso, o que o legislador garante é a manutenção do vínculo contratual de emprego à vítima, durante certo período de tempo. Dessa afirmação surgem alguns questionamentos, de ordem processual e material, relacionados ao direito trabalhista.
A primeira questão diz respeito à competência do juiz estadual determinar a um terceiro, o empregador, que mantenha o vínculo de uma de suas empregadas durante certo período de tempo.
Ora, se nossa Constituição Federal estabelece que é da Justiça do Trabalho a competência para apreciação e julgamento das ações oriundas das relações de trabalho e outras controvérsias dela decorrentes, nos termos da lei (art. 114, incisos I e IX, da CF/1988, respectivamente), será que é possível a determinação, por outro ramo do Judiciário, da manutenção do vínculo trabalhista de alguém?
Segundo Camilo Pileggi, sim. Para esse doutrinador “[...] é inegável que Lei Federal de natureza específica previu manutenção de emprego, devendo ser admitida pelo ordenamento jurídico, notadamente o Juízo Trabalhista, a quem produz os efeitos em todos os tipos de contrato de trabalho subordinado” .
Na verdade, o raciocínio a ser construído é se uma lei federal pode constituir espécie de manutenção de vínculo trabalhista - garantia de emprego -, a ser declarada pela justiça não especializada do trabalho.
Assim, antes de se analisar sobre a prática de atos incompetentes por parte de um determinado juízo, é preciso perceber que a lei pode estabelecer hipóteses de garantia de emprego. Como afirmado por Gustavo Filipe Barbosa Garcia: “A estabilidade, entendido o termo de modo genérico, pode ser objeto de previsão na Constituição Federal, na lei, em normas coletivas (como acordo coletivo e convenção coletiva), em regulamento de empresa e mesmo no contrato individual de trabalho”.
Logo, por se tratar de lei federal, verifica-se que a Lei nº 11.340/2006, na parte referente à manutenção do vínculo trabalhista, durante o período de afastamento de empregada vítima de violência doméstica ou familiar (art. 9º, § 2º, inciso II), não é inconstitucional, por respeitar a competência privativa da União de legislar sobre direito do trabalho (art. 22, I, da CF/1988).
O que se observa, destarte, é que não se trata de atribuir competência à justiça comum cível ou criminal no sentido de reconhecimento de vínculo trabalhista ou de algum direito inerente ao contrato de emprego existente. Trata-se, por oportuno, de reconhecimento de direito constitucional individual e social do trabalhador, direito de permanência no emprego - baseado no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 3º, III, da CF/1988) e da proteção à integridade física do trabalhador, enquanto integrante da família (arts. 5º, III 9; 6º 10; 226, § 8º, da CF/1988) -, assegurado por lei federal.
Apenas para ilustrar essa tese, tem-se que a justiça comum terá competência para reconhecer a estabilidade de um empregado, nos casos em que não se discutam direitos decorrentes da relação de trabalho, como na hipótese em que um integrante do Conselho Nacional da Previdência Social pretenda ter o reconhecimento de sua estabilidade (art. 3º, § 7º 11, da Lei nº 8.213/1991), através de uma ação declaratória, por exemplo, apenas para efeito de comprovação dessa condição no âmbito da instituição que o indicou (art. 3º, § 2º 12, da Lei nº 8.213/1991).
Percebe-se, noutro passo, que o magistrado não especializado do trabalho não possui discricionariedade no sentido de reconhecer ou não o direito à manutenção do emprego da trabalhadora, uma vez que a dicção da norma é clara ao dispor que “o juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e familiar, para preservar sua integridade física e psicológica, a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses”.
Desse modo, vê-se que é o reconhecimento de um direito assegurado por norma infraconstitucional às trabalhadoras, vítimas de violência doméstica ou familiar, que deve ser feito pelo juízo competente para determinar as demais medidas necessárias para a preservação da integridade física e psicológica da vítima.
Essa, a opinião de Pedro Rui da Fontoura Porto, em artigo publicado sobre o assunto:
“Acredita-se, entretanto, somente competir ao juízo criminal reconhecer que uma trabalhadora se enquadra na situação descrita na referida Lei, visto tratar-se de um litígio totalmente estranho à relação de emprego: a identificação do caso de violência doméstica.”
E arremata, o doutrinador, com relação ao desrespeito, por parte do empregador, à estabilidade provisória garantida à empregada:
“Caso o empresário não cumpra, e promova a rescisão do contrato de trabalho, aí sim surgiria a lide trabalhista, pois, a empregada, após ter um direito reconhecido, sofreu sua violação pelo empregador. Nesse caso, a solução para o restabelecimento do vínculo passa por uma reclamatória trabalhista, onde a trabalhadora exporá a violação de seu direito ao juiz do trabalho.”
No caso, somente estaria configurado um conflito de interesses trabalhista, a ser resolvido pelo ramo especializado trabalhista do Poder Judiciário, havendo o desrespeito ou a negação do direito à estabilidade da empregada, garantido por lei e reconhecido judicialmente. Sem essa caracterização, não cabe falar em lide trabalhista apta a atrair a competência material da justiça obreira.
O que deve ser observado, contudo, é que deve, a vítima de violência doméstica ou familiar, procurar a tutela jurisdicional adequada - justiça comum criminal ou cível, a depender do caso -, quando da experimentação de situação de violência familiar ou doméstica, haja vista o afastamento do emprego com a manutenção do vínculo depender de provimento jurisdicional específico neste sentido.
Seria, por outro lado, um verdadeiro non sense jurídico reconhecer a incompetência do juízo não especializado do trabalho para essa finalidade, sob o argumento de que esse juízo teria de comunicar ao juízo trabalhista para assim o fazer.
Ora, a proteção integral da vítima de violência deve ser imediata, sob pena de não se alcançar a proteção do direito à vida e a dignidade do ser humano. Nesta ótica, todas as formas de se embaraçar essa proteção devem ser entendidas como formas de negação desse direito, de sua burocratização desnecessária.
Outrossim, é importante destacar que a manutenção do vínculo trabalhista só assegura à vítima de violência doméstica ou familiar a garantia de permanecer no emprego durante o período estipulado judicialmente, haja vista o legislador ter estabelecido um limite temporal máximo (6 meses), podendo o julgador definir a periodicidade da medida, considerando os fatores circunstanciais do caso concreto.
Portanto, entende-se que o juízo não especializado trabalhista é competente para se reconhecer o direito à permanência no emprego da vítima de violência doméstica e familiar, devendo ser considerado constitucional o art. 9º, § 2º, inciso II, da Lei nº 11.340/2006.

4 - AFASTAMENTO DO TRABALHO - HIPÓTESE DE INTERRUPÇÃO OU SUSPENSÃO CONTRATUAL?
Noutro pórtico, o afastamento de trabalhadora do seu emprego, por ter sido vítima de violência doméstica ou familiar, autoriza a discussão acerca de outro aspecto relacionado com as normas e os institutos justrabalhistas.
Trata-se da necessária caracterização desse afastamento como uma hipótese de interrupção ou de suspensão do contrato de emprego, a fim de delinear, com maior precisão, os seus efeitos jurídicos.
Assim, antes de se propor qualquer definição sobre o tema, é preciso que sejam analisadas as bases teóricas sobre as quais repousam o assunto: os institutos da suspensão e da interrupção do contrato de trabalho.
Conforme conceituado por Maurício Godinho Delgado:
“A suspensão contratual é a sustação temporária dos principais efeitos do contrato de trabalho no tocante às partes, em virtude de um fato juridicamente relevante, sem ruptura, contudo do vínculo contratual formado. [...] Já a interrupção contratual é a sustação temporária da principal obrigação do empregado no contrato de trabalho (prestação de trabalho e disponibilidade perante o empregador), em virtude de um fato juridicamente relevante, mantidas em vigor todas as demais cláusulas contratuais.”
O fato jurídico relevante, no caso em comento, é a violência sofrida pela empregada, que, por causa disso, necessita se ausentar do local de trabalho, por se encontrar em situação de risco social, podendo ser objeto de agressão por parte do causador da violência.
A questão, no entanto, é definir quais as obrigações do empregador e do empregado são suspensas durante o período de afastamento.
Nesse ponto, já se colhem na doutrina entendimentos divergentes. Há os que entendem se tratar de hipótese de suspensão do contrato, como Pedro Rui da Fontoura Porto e Camilo Pileggi, por exemplo. Em suma, apresenta, essa corrente doutrinária, os seguintes argumentos:
(a) Não se pode onerar o empregador com o pagamento de salários e depósitos do FGTS, além da ausência de prestação de serviços, a evento que não deu causa;
(b) Não houve previsão na Lei nº 11.340/2006 sobre o pagamento de salários pelo empregador, durante o período do afastamento, não podendo ser este obrigado a fazer o que a lei não dispôs (art. 5º, II, da CF/1988);
(c) Ao permitir o pagamento dos salários à empregada afastada do trabalho, estar-se-ia criando obrigação específica do empregador em relação as suas empregadas mulheres, estabelecendo, assim, situação de discriminação do mercado de trabalho feminino.
Todavia, propõe Camilo Pileggi que deveria ser garantida à trabalhadora afastada do emprego um benefício de natureza assistencial:
“O máximo que se pode admitir é o pagamento, pelo empregador, do valor máximo previsto no LOAS, e compensação direta com as contribuições previdenciárias devidas por este, igualando aos casos das prestações a título de salário-maternidade.”
Segundo a proposta acima, à empregada seria aplicado o art. 22, § 2º, da Lei nº 8.742/1993, ainda pendente de regulamentação.
Existe corrente doutrinária, contudo, que defende se tratar de hipótese de interrupção contratual, baseando-se nas seguintes assertivas:
(a) A própria Lei nº 11.340/2006 assevera que devem ser considerados, na sua interpretação, os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar (art. 4º);
(b) A situação retratada é de afastamento involuntário da empregada, por ato de violência, frise-se, situação rechaçada pela própria Carta Magna em seu art. 226, § 8º.
Cumpre ressaltar, todavia, que essa corrente doutrinária defende se tratar de hipótese atípica de interrupção contratual, assemelhando-se à situação do constrito (Decreto nº 99.684/1990). Para Eduardo Câmara, por exemplo, deveria ser mantida a contagem do afastamento no período aquisitivo das férias, os recolhimentos ao FGTS e ao INSS, considerando o afastamento involuntário da empregada sem culpa sua ou do empregador.
Segundo esse mesmo doutrinador, não seria o caso de manter o pagamento de salários à empregada afastada do trabalho, mas “faz-se necessário (sic) a criação de um auxílio pecuniário em decorrência do ‘afastamento involuntário do emprego (sem o rompimento do vínculo)’, a ser pago pelo INSS ou com recursos do FAT (a exemplo do seguro-desemprego), possuindo caráter assistencial”.
Não obstante os que entendem se tratar de situação atípica de interrupção contratual, percebe-se que a paralisação das principais obrigações contratuais das partes numa relação trabalhista, qual seja, a prestação dos serviços e o pagamento de salário, autoriza a conclusão de que a hipótese em questão aproxima-se de uma suspensão contratual atípica. Nessa linha de pensamento, defende, Maurício Godinho Delgado:
“É que [...] quase todas as cláusulas contratuais ficam sustadas no período de afastamento - o que se ajusta à figura suspensiva. Insista-se em especial as duas principais cláusulas e obrigações do contrato empregatício ficam sustadas, isto é, a prestação laborativa (cuja sustação desfavorece o empregador) e o pagamento de salário (cuja sustação desfavorece o obreiro) - o que se ajusta, mais uma vez, à figura suspensiva.”
Todavia, seria necessário o estabelecimento de algum tipo de prestação à trabalhadora afastada do local de trabalho.
Dessa forma, percebe-se que a caracterização da situação em tela como sendo suspensão contratual atípica é a que melhor se adequa aos fins sociais da norma em apreço. Ora, não seria admissível que alguém que se afasta do emprego por se encontrar em evidente risco social não possuísse qualquer tipo de assistência do Estado nesse período. A respeito, importante destacar o disposto em nossa Constituição Federal, sobre a assistência social:
“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;”
Interpretando o disposto acima, Alexandre de Moraes assevera que:
“[...] as regras constitucionais de Assistência Social, nos termos do inciso III, do art. 203, visam à promoção da integração ao mercado de trabalho, como forma de promoção da dignidade da pessoa humana, fundamento básico da República (CF, art. 1º, III).”
Percebe-se, pois, que se o objetivo do legislador constitucional é preservar a dignidade da pessoa humana através da promoção de práticas assistenciais que integrem os indivíduos ao mercado de trabalho, é possível admitir que deixar a trabalhadora, vítima de violência doméstica e familiar, sem qualquer tipo de assistência, durante o período do afastamento do seu local de trabalho, é expurgá-la do mercado de trabalho, retirando-lhe o sustento, impossibilitando a fruição dos bens de consumo mínimos para sua sobrevivência e de sua família, o que fere, com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana, já mencionado.
Desse modo, tem-se que à trabalhadora deveria ser garantida a contagem do tempo em que permaneceu afastada do trabalho por motivos alheios a sua vontade (arts. 4º, parágrafo único, e 471, caput, da CLT), devendo este período ser computado para todos os efeitos legais.
Além disso, deveria ser criado um benefício assistencial a esses indivíduos vítimas de violência familiar e doméstica, sob pena de não-concretização do seu direito à dignidade, à segurança na sociedade, ao trabalho e à integridade física, todos de caráter constitucional e fundamental, cuja eficácia é imediata à luz do art. 5º, § 1º, da Carta Magna.
Portanto, vê-se que o afastamento, do trabalho, da vítima de violência doméstica ou familiar deve ser tido como hipótese de suspensão contratual atípica, em que devem ser mantidas as obrigações do empregador quanto ao recolhimento do INSS e do FGTS, além da contagem do tempo de serviço para todos os efeitos legais.

CONCLUSÃO
O que se percebe, no tocante à Lei nº 11.340/2006, é que seus efeitos trabalhistas não foram suficientemente analisados e esclarecidos pelo legislador, cuja maior preocupação foi em relação aos aspectos penais e processuais penais.
Todavia, é preciso demonstrar que a integral proteção da vítima de violência doméstica e familiar pressupõe a concretização da sua segurança, a qual somente se perfaz mediante a adoção de medidas assistenciais, ao lado das de natureza repressiva (afastamento do local de convivência, proibição de permanência no mesmo ambiente, reclusão do agressor).
Dentre as medidas de natureza assistencial, impõe-se destacar a relativa à manutenção do vínculo empregatício, na hipótese de afastamento do local de trabalho (art. 9º, § 2º, inciso II, da Lei nº 11.340/2006).
O que se observa, nesse ponto, é que dois questionamentos principais surgem em face dessa previsão infraconstitucional: a competência do juízo não especializado do trabalho, de afastar o empregado do local de trabalho; as obrigações trabalhistas que devem ser mantidas durante o período do afastamento.
Como visto, ao juízo não especializado do trabalho, no exame de uma situação envolvendo a prática de violência doméstica ou familiar, não caberá o reconhecimento de vínculo trabalhista ou de algum direito inerente ao contrato de emprego existente, mas apenas o reconhecimento do direito à manutenção do emprego da trabalhadora.
Dessa forma, estando devidamente respeitada a competência privativa da União para legislar sobre direito do trabalho e considerando que a atribuição do juízo não especializado trabalhista é assegurar um direito, de caráter sócio-fundamental, previsto por norma infraconstitucional às trabalhadoras, vítimas de violência doméstica ou familiar, tem-se que não há se falar em incompetência desse juízo ou da inconstitucionalidade da norma em questão (Lei nº 11.340/2006).
Noutro passo, não obstante a existência de corrente doutrinária no sentido da suspensão do contrato de emprego, durante o período de afastamento do local de trabalho, da vítima de violência doméstica ou familiar, tem-se que deve ser garantida a contagem do tempo dessa empregada que permaneceu afastada do trabalho por motivos alheios a sua vontade (arts. 4º, parágrafo único, e 471, caput, da CLT), devendo este período ser computado para todos os efeitos legais, sendo devidos, inclusive, os recolhimentos do INSS e do FGTS.
Trata-se, como se vê, de hipótese atípica de suspensão do contrato de emprego, em que os salários não devem ser pagos pelo empregador, por ausência de previsão normativa específica nesse sentido e para que não haja desestímulo relativo à contratação de trabalhadores do gênero feminino, criando-se situação de discriminação desconforme com o princípio da isonomia, previsto no art. 5º, I, da Constituição Federal.
Deve ser criado, todavia, um benefício assistencial a esses indivíduos vítimas de violência familiar e doméstica, sob pena de não-concretização do seu direito à dignidade, à segurança na sociedade, ao trabalho e à integridade física, todos de caráter constitucional e fundamental, cuja eficácia é imediata à luz do art. 5º, § 1º, da Carta Magna.
Dessa forma, tem-se que a situação delicada vivida pela vítima de violência autoriza a tutela do Estado, devendo ser a ela assegurada uma proteção imediata, de forma a preservar sua integridade física e psicológica.
Portanto, devem ser formuladas pelo Estado medidas implementadoras dos direitos garantidos pela Lei Maria da Penha, incluindo-se as relativas aos aspectos assistenciais, que se vinculam à manutenção digna da vítima durante o período de afastamento do trabalho, a fim de evitar repercussões negativas às mulheres detentoras e não detentoras de vínculo empregatício.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006.
CÂMARA, Eduardo. Repercussões trabalhistas da Lei “Maria da Penha”. Revista do direito trabalhista, v. 12, n. 10, p. 3-7, out. 2006.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2005.
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Método, 2007.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.
PILEGGI, Camilo. Lei Maria da Penha: acertos e erros. Disponível em: .
PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Anotações preliminares à Lei nº 11.340/06 e suas repercussões em face dos Juizados Especiais Criminais. Jus Navigandi, Teresina, n. 1.169, a. 10, set. 2006. Disponível em: . Acesso em: 09 nov. 2007.

|

0 Comments

Postar um comentário

Copyright © 2009 Paula Direito All rights reserved. Theme by Laptop Geek. | Bloggerized by FalconHive.