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DA INCONSTITUCIONALIDADE DA CORREIÇÃO PARCIAL

Posted by Paulinha on 14:27 in
DA INCONSTITUCIONALIDADE DA CORREIÇÃO PARCIAL

Gabriel Velloso
Desembargador do Trabalho no TRT/PA - 8ª Região
O objetivo do presente trabalho é, de forma sucinta, demonstrar a incompatibilidade da chamada “correição parcial” com a Constituição Federal de 1988 e com postulados centrais da dogmática jurídico-processual brasileira e a necessidade de sua substituição por meios que já existem em nosso ordenamento.
1. BASE LEGAL PARA A CORREIÇÃO PARCIAL NA ESFERA TRABALHISTA.
Trata a CLT da correição parcial no art. 709, ao enunciar que “Compete ao Corregedor, eleito dentre os Ministros do Tribunal Superior do Trabalho”, “decidir reclamações contra os atos atentatórios da boa ordem processual praticados pelos Tribunais Regionais e seus Presidentes, quando inexistir recurso específico”. Atribuição semelhante foi concedida aos Presidentes dos Tribunais Regionais do Trabalho, aos quais cabe exercer correição, pelo menos uma vez por ano, sobre as Juntas, ou parcialmente, sempre que necessário”, no art. 682. A Lei 1.533/51 complementa a figura ao dispor que descabe mandado de segurança contra despacho ou decisão judicial para o qual caiba recurso ou que possa ser modificado por via de correição.
Devido à relativa economia legal, a correição parcial foi incorporada nos Regimentos Internos dos Tribunais, sem grande adaptação. Decidiu-se prever a possibilidade de ajuizamento de reclamação correicional, sempre que a decisão implicasse em “tumulto ou inversão da boa ordem processual” e dela não coubesse recurso ou o prejuízo fosse irreparável ou iminente. O procedimento, via de regra, é sumário. A parte ou interessado ingressa com petição narrando os fatos que ensejaram a reclamação e o Juiz-Corregedor defere ou não a liminar. Em qualquer caso, exceto quando a rejeita de plano, ouve a autoridade atacada, em prazo fixado em regimento, para que informe sobre os fatos. Por fim, profere a decisão final, que mantém ou não o despacho ou decisão atacada.
Como se demonstrará a seguir, o instituto e seu procedimento violam, às escâncaras, vários princípios constitucionais do processo.
2. DA NATUREZA RECURSAL DA CORREIÇÃO PARCIAL.
O surgimento da correição parcial no Brasil se deu com o Decreto nº 9.623/11, que previu a possibilidade de correição parcial sempre que fato grave o exigisse, ao lado das correições ordinárias anuais.
Nesse sentido, a medida mantinha-se dentro dos limites administrativos. O Juiz Corregedor se dirigia ao órgão reclamado e buscava informações ou averiguava in loco, para aferir a situação e tomar providências dentro de sua esfera de poder.
A feição recursal foi introduzida na legislação federal pelo Decreto-lei nº 2.726/40, que previu a correição parcial para a “emenda de erros, ou abusos, que importem na inversão tumultuária dos atos e fórmulas da ordem legal do processo”.
Manoel A. Teixeira Filho, com argúcia, doutrina que:
Pertencem ao passado as correntes de pensamento que sustentavam ser a correição uma providência ou recurso administrativo, mero exercício de direito de petição, ou um direito público. Para a moderna doutrina, essa providência tem caráter recursal, embora se trate de um recurso judicial sui generis e de origem manifestamente clandestina.
Em resposta aos argumentos contrários, que não lhe reconheciam o status de recurso por inexistência de previsão legal, o jurista lança objeção irretorquível:
O fato de, efetivamente, a correição parcial não estar incluída no rol dos recursos apenas confirma a sua clandestinidade, de vez que essa figura penetrou nos regimentos internos de tribunais brasileiros e, desse modo, vem sobrevivendo até o dia de hoje. A possibilidade, entretanto, de a correição parcial acarretar a reforma ou a cassação do ato judicial revela o seu perfil recursal.
O repúdio ao meio, classificado como ditatorial pelo autor, é acompanhado, com veemência idêntica ou maior, pela judiciosa doutrina de Pontes de Miranda, que a classifica como “figura intrusa, ditatorialiforme”. José Frederico Marques lhe dirige ácidas críticas: “a correição parcial é um instituto que a praxe vem admitindo e que se tornou até conhecido, com ligeira referência no diploma legal que regula o mandado de segurança; todavia, é ele o maior aleijão de que temos conhecimento em nosso direito positivo1”
Mesmo que acentuado seu caráter administrativo, seu descabimento é ainda mais manifesto, pois “se for providência de ordem disciplinar, fere frontalmente a independência da função judiciária por sujeitar atos jurisdicionais a controle de órgão administrativos2”.
Apesar dos aspectos superficialmente administrativos, a correição funciona como efetivo recurso e a parte dele se vale para modificar decisões, despachos e até aspectos de sentenças prolatadas pelos juízes.
3. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A CORREIÇÃO PARCIAL E O SISTEMA DAS GARANTIAS PROCESSUAIS ASSEGURADO PELA CONSTITUIÇÃO.
A base da formulação constitucional para proteção do direito do cidadão a um processo justo encontra-se na combinação dos incisos XXXV, LIV e LV do art. 5º da Constituição. É a partir da inafastabilidade da tutela jurisdicional que se atribui ao Poder Judiciário o monopólio da Jurisdição. É axioma constitucional dos Estados Democráticos que a cada um deve ser assegurado “o seu dia no Corte” e a certeza de que a lide será apreciada por Juiz devidamente investido para a função, com observância de princípios impessoais e do processo legal. Neste feixe de direitos se incluem a ampla defesa e o contraditório, com o acesso aos meios e recursos a ela inerentes.
No primeiro item descrevemos, em rápidas pinceladas, os passos procedimentais que são seguidos no processamento da reclamação correcional. Vejamos agora sua coerência ou não com as bases assentadas na Constituição.
Não se pode admitir a convivência do procedimento adotado nas correições parciais com a garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório. Recapitule-se: a correição parcial tem sido admitida como recurso, sem a necessária oitiva da parte contrária. Em todos os procedimentos recursais, ressalva feita aos embargos de declaração, cuja natureza recursal é discutível, é imprescindível que a parte que possui interesse na manutenção da decisão contraminute as razões recursais, explicando as razões pelas quais entende que a decisão deve ser mantida. O meio inquisitorial pelo qual são decididas as correições parciais subtrai ao litigante a possibilidade de tomar ciência do que está acontecendo no feito. Quando os fatos chegam a seu conhecimento, já houve a decisão e consumou-se a ofensa à garantia constitucional.
A possibilidade de decisão final sem oitiva da outra parte é ofensa direta ao art. 5º, LV da Constituição Federal, que não pode persistir.
O princípio do devido processo legal é também violado com a manutenção da correição parcial. É assegurado aos litigantes, no processo do trabalho, a reapreciação das decisões através de órgão colegiado de segundo grau. A estrutura da Justiça do Trabalho, conforme o art. 111 da Constituição Federal, é paritária. Seus órgãos são o Tribunal Superior do Trabalho, os Tribunais Regionais do Trabalho e as Juntas de Conciliação e Julgamento. Os Juízes Corregedores não detém competência, originária ou recursal, para resolver litígios. Tais decisões subtraem das Turmas do Tribunal a competência que lhes é assegurada para conhecer dos recursos. Tal particularidade só se explica pela origem espúria do instituto, descendente das Cartas de Justiça do direito reinol, dirigidas ao monarca que detinha a autoridade suprema sobre as decisões judiciárias. É mais um aspecto que discrepa de todo o sistema recursal pátrio, que consagra o princípio de duplo grau de jurisdição, afeito a órgão colegiado.
Por outro lado, a normatização do recurso da correição parcial através de Regimentos Internos implica em violação do princípio da reserva legal. Apenas o Congresso Nacional pode legislar sobre Processo do Trabalho3. Não se pode, através de regimentos internos, emprestar caráter de legalidade à figura sem par no Direito Brasileiro4. Já Moniz de Aragão, em pena inspirada, destacada a inconstucionalidade do meio:
“Além de ferir profundamente a teoria do processo, a correição desrespeita princípio explícito da Constituição Federal, que atribui ao Congresso, apenas, legislar sobre direito processual. Demais, sempre se entendeu que só a lei pode instituir recursos, não se admitindo qualquer interpretação extensiva no sentido de permiti-los através dos Regimentos Internos de quaisquer tribunais. Não tendo função jurisdicional, mas administrativa, os Conselhos e as Corregedorias de justiça estão inibidos de proferir julgamentos em autos. Tais pronunciamentos são ínrritos e sua admissão pelos órgãos e Tribunais superiores não lhes dá validade. Ao contrário, denuncia o ditatorialismo malsão daqueles que assim procedem e o fazem por não estarem, ainda, integrados no regime republicano-democrático a que nos filiamos”5.
A acolhida de correições ordinárias, em fase de instrução, torna ainda mais evidente a descabida intromissão do instituto em processo do trabalho. Sabe-se que, atendendo aos princípios da concentração e da celeridade, o direito brasileiro acolheu a irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias no processo do trabalho. Apenas através de recurso ordinário pode a parte se insurgir contra os supostos erros in procedendo das Juntas.
A correição ordinária subverte diretamente a norma legal. Permite que decisões do órgão judicial de primeiro grau sejam revistas pelo Juiz Corregedor, em censurável ato singular sem precedente na sistemática processual trabalhista. Alfredo Buzaid não ignorou este aspecto:
“O processo civil caminha através de recursos, admissíveis contra decisões injustas ou ilegais, proferidas pela autoridade judiciária. A inserção da correição parcial, nas leis de organização judiciária, significa, em última análise, uma subversão dos princípios que estruturam o processo civil.6”
Para remate deste ponto, deve-se notar que não existe conceituação que ofereça a mais rasa definição, do que seja “ato atentatório à boa ordem processual”. Dessa vagueza normativa servem-se as partes que desejam impor tumulto processual, em procura de decisões arbitrárias e de caráter subjetivo. Esta incerteza expõe a inadequação da figura ao devido processo legal, que não compadece com a absoluta imprecisão acerca do cabimento ou não de meio recursal.
A decisão da correição ordinária pelo Juiz Corregedor, ao invés de órgão judicante, sua ausência de previsão legal e inadequação às normas do processo do trabalho evidenciam sua incompatibilidade com o art. 5º LIV da Constituição Federal.
4. CONCLUSÃO.
Para remate, não se poderia deixar de tocar, ao lado da absoluta injuridicidade do instituto, dos objetivos desfocados e da função que vem exercendo sobre o Judiciário Trabalhista de Primeiro Grau.
Convencidos do caráter censório, os litigantes buscam o recurso da correição parcial ou o ameaçam quando buscam impor-se de forma tumultuária ao feito ou quando tentam desestabilizar o juiz que conduz a instrução ou a execução de forma contrária a seus interesses, perseguindo uma reprimenda da autoridade superior.
Não se imagina que o Juiz do Trabalho de Primeiro Grau não seja responsável por seus atos. Mas os meios para apená-lo já estão previstos, seja na Lei Orgânica da Magistratura, seja na Constituição Federal. Caso descumpra com suas obrigações, deverá ter sua responsabilidade apurada, sim, mas de acordo com os dispositivos previstos na Lei Maior.
O Magistrado deve ter a responsabilidade e o dever de decidir, nunca o receio de tomar decisões. As partes dispõem dos recursos legalmente previstos ao órgão superior, que é a forma adequada para rever os atos judiciais.
O mal é antigo, tanto que motivou o Magistrado Antonio Lamarca a proferir, já no longínquo ano de 1962, as seguintes observações:
A correição parcial tem-se tornado, na Justiça do Trabalho de São Paulo, instrumento de intimidação dos juízes.
Alguns querem, com todo o afã, transformá-la em instituição e com isso, pretendem, simplesmente, embaraçar a atividade do órgão julgador, procrastinando a solução dos processos.
É preciso acabar com essa mazela. A independência da magistratura constitui requisito fundamental à liberdade dos cidadãos e à inviolabilidade do seu patrimônio. Sempre que for requerida a correição parcial, o juiz não deve abster-se de, como preliminar, arguir sua inconstitucionalidade, da forma que o fez o ilustre magistrado Francis Selwyn Davis, uma rara jóia no corpo judicante paulista7.
Que sua advertência, ainda atual nos dias de hoje, não seja ignorada.
PROPOSTAS:
1. O instituto da correição parcial é incompatível com a Constituição Federal de 1988;
2. Os magistrados da Justiça do Trabalho devem buscar a extirpação dos dispositivos que a prevêem nos regimentos internos dos Tribunais;
3. Sugere-se a cada magistrado, ao responder a pedido de informações em reclamação correicional, arguir, preliminarmente, a inconstitucionalidade do meio processual, pelos motivos debatidos na proposta8.
Gabriel Velloso é Juiz do Trabalho, Diretor-Secretário da AMATRA VIII e pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP.
______________
Notas de Rodapé
1 José Frederico Marques, A Correição Parcial, Revista Jurídica 19/35.
2 José Frederico Marques, op. cit.
3 Pedro Martins, ao criticar as leis de organização judiciária estadual que a admitiam, apontou quebra do princípio constitucional da unidade da lei processual ao território nacional, voltando à estadualização do processo abolida pela Constituição de 1934.
4 Lopes da Costa, Manual Elementar de Direito Processual Civil, 1956; José Frederico Marques, op. cit..
5 A Correição Parcial, in Jornal “O Estado de São Paulo”.
6 Correição Parcial, RT 281/70.
7 Execução na Justiça do Trabalho, Ed. Fulgor, p. 110-111.
8 A proposta foi defendida na comissão temática e aprovada com a substituição da expressão “Deve cada magistrado...” por “Sugere-se a cada magistrado...”. Com a modificação, houve aprovação unânime na plenária final.
“Trabalho em Revista”, encarte de DOUTRINA “O TRABALHO” – Fascículo n.º 145, Março/2009, p. 4912.

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