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O TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO E A APLICABILIDADE DA SÚMULA Nº 423 DO COLENDO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO
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Doutrina
O TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO E A APLICABILIDADE DA SÚMULA Nº 423 DO COLENDO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO
Francisco Milton Araújo Júnior
Juiz Federal do Trabalho Titular da 2ª VT de Marabá no TRT/PA - 8ª Região
“Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio do nosso Senhor Jesus Cristo; por intermédio de quem obtivemos igual acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes, e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus.
E não somente isto, mas também nos gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança.
Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Romanos - Capítulo 5, v.1/5).
1 - Definição de jornada de trabalho.
Originalmente, jornada corresponde ao lapso temporal diário, referindo-se à noção de dia, inclusive no italiano corresponde a giornata (giorno - dia) e no francês a journée (jour - dia), sendo conceituada por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira como “marcha ou caminho que se faz em um dia; viagem por terra; ação ou expedição militar; duração do trabalho diário”1.
Utilizando-se o sentido original pode-se definir jornada de trabalho, no sentido estrito, como o lapso temporal diário em que o trabalhador se coloca à disposição do empregador em razão do contrato de trabalho, executando suas atividades ou aguardando ordens.
Atualmente o termo jornada de trabalho vem sendo utilizado de forma mais ampla, inclusive o próprio legislador vem utilizando a expressão jornada semanal (“à soma das jornadas semanais de trabalho” art. 59, parágrafo segundo, da CLT), para designar o lapso temporal semanal em que o empregado fica à disposição do empregador, podendo estar laborando ou aguardando ordens.
Verifica-se, portanto, que o termo jornada de trabalho é utilizado como sinônimo de duração do trabalho, abrangendo o lapso temporal de efetivo trabalho ou de simples disposição, podendo ser utilizado para mensurar o labor diário (jornada diária), semanal (jornada semanal) ou mensal (jornada mensal).
A jornada de trabalho normal é o tempo máximo previsto para a execução das atividades laborais num determinado período (dia, semana, mês ou ano), devendo observar o equilíbrio entre o desgaste físico-mental e restauração das energias orgânicas do trabalhador.
Com base no equilíbrio entre o desenvolvimento das atividades produtivas e o bem-estar do trabalhador, o ordenamento jurídico brasileiro, através da Constituição de 1988 (art. 8º, inciso XIII), consagrou como jornada de trabalho máxima de 08 (oito) horas por dia e de 44 (quarenta e quatro) horas semanais, facultando a compensação de horários e a redução da jornada mediante acordo ou norma coletiva.
A fixação pela Carta de 1988 da jornada de trabalho serve como parâmetro limitativo de tempo máximo para a execução das atividades laborais em geral, não impedindo, portanto, que seja estabelecido, através de acordo (individual ou coletivo) ou de ato unilateral do empregador (através do regulamento da empresa), jornada de trabalho inferior.
Ressalta-se que, determinadas categorias profissionais2, em razão de estarem submetidas a condições especiais de labor, possuem jornada de trabalho reduzida como forma de manter o equilíbrio entre a atividade laboral e a saúde do obreiro.
2 - Turnos ininterruptos de revezamento: caracterização jurídica.
Etimologicamente, a palavra turno, consoante De Plácido e Silva, advém do “francês tours (volta, giro, circuito) e exprime a ordem utilizada para o revezamento, ou a alteração, no exercício, ou no desempenho de um cargo (...) o que se faz alternada, ou revezadamente, de modo que as substituições se vão operando por turno, ou pela convocação daquele que está em sua vez”3.
A essência etimológica da palavra se amolda perfeitamente à caracterização jurídica do instituto epigrafado. Nesse sentido, José Augusto Rodrigues Pinto e Rodolfo Pamplona Filho conceituam turnos ininterruptos de revezamento como o “sistema de utilização do trabalho na empresa, consistente em dividir os empregados em grupos, turmas ou equipes que se revezam no local da prestação, em horários diferentes, com redução constitucional da jornada ordinária, de modo a permitir a continuidade absoluta da atividade econômica”4.
O sistema de turnos ininterruptos de revezamento se caracteriza pela existência concomitante dos seguintes fatores: turnos (existência de turmas de empregados previamente escalados), revezamento (ocorrência de alternância entre os turnos de trabalhadores para desempenhar suas atividades no período diurno, noturno ou misto, podendo variar diariamente, semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente) e ininterrupção (não dissolução de continuidade nas atividades laborais, no período de 24 (vinte e quatro) horas, sem prejuízo da existência de intervalos intrajornada e interjornada destinados ao repouso e a alimentação do trabalhador).
3 - Turnos ininterruptos de revezamento: prejuízos ao trabalhador.
As constantes variações no horário de trabalho, alimentação, repouso e lazer, decorrentes do regime de turnos ininterrupto de revezamento, vêm causando severos distúrbios na saúde do trabalhador, com a afetação principalmente do sistema nervoso e do sistema digestivo, como também vêm proporcionando ao trabalhador diversos problemas no relacionamento sócio-familiar.
As anomalias no sistema nervoso, causadas pelo labor em turnos ininterruptos de revezamento, normalmente se relacionam com os distúrbios do sono.
Sobre os efeitos fisiológicos do sono, Arthur C. Guyton afirma que “a vigília prolongada está freqüentemente associada a uma disfunção progressiva da mente e, também, provoca atividades comportamentais anormais. Todos nós estamos familiarizados com a maior lentidão de pensamento que ocorre no final de um prolongado período de vigília, mas além disso, uma pessoa pode tornar-se irritadiça ou até psicótica após a vigília forçada por período prolongado (...). Por isso, na ausência de qualquer valor funcional do sono, definitivamente demonstrado, poderíamos postular que o principal valor do sono é o de restaurar o equilíbrio natural entre os centros neurais”5.
As mudanças no horário de trabalho, repouso e alimentação, freqüentes nos regimes de turnos ininterruptos de revezamento, propiciam dificuldades orgânicas no gerenciamento dos ciclos fisiológicos e acarretam o alongamento dos períodos de vigília e a diminuição dos períodos de sono.
Com a constância no aumento dos períodos de vigília em prejuízo do equilíbrio natural dos centros neurais, a ocorrência dos distúrbios no sono do trabalhador passa a se manifestar através de insônia, irritabilidade, sonolência excessiva durante o horário de trabalho (seja este no período matutino, vespertino ou noturno) ou fadiga crônica.
Neste sentido, Frida Marina Fischer e Renato Rocha Lieber comentam que a “os sintomas mais freqüentes do mal-estar percebido incluem fadiga, variações de humor, nervosismo, dificuldades em dormir, falta ou aumento do apetite, dificuldades em realizar um trabalho habitual, perturbações de memória etc. A duração da dessincronização biológica depende dos esquemas de turnos: quanto maior o número de jornadas de trabalho que obriguem o trabalhador a inverter seu ciclo de atividade-repouso, maior o número de dias necessários para conseguir uma inversão dos ritmos biológicos”6.
As horas irregulares dos turnos ininterruptos de revezamento também provocam alterações nos hábitos alimentares do trabalhador, com aumento ou diminuição do apetite, passando a realizar vários lanches durante o dia e a noite em detrimento das refeições regulares (café da manhã, almoço e jantar), o que favorece o aparecimento de distúrbios gastrointestinais, como azia, gastrite e úlcera.
Hadengue afirma que “a queimação epigástrica é uma manifestação característica entre trabalhadores que modificam seu período de trabalho, e esse sintoma perdura por alguns dias, desaparecendo e novamente reaparece, quando ocorre a nova troca de horários de trabalho. Nas equipes noturnas, certos indivíduos não atingem a fase de adaptação”7.
Frida Marina Fischer e Renato Rocha Lieber, analisando diversas pesquisas sobre as alterações gastrointestinais, noticiam que o “trabalho de Segawa e cols., publicado em 1987, que relata inquérito realizado com 11.657 trabalhadores japoneses. Os autores constataram que a úlcera gástrica era duas vezes mais freqüente entre os trabalhadores em turnos do que entre diurnos; este estudo também revela que parece haver uma maior capacidade ulcerogênica residual entre os ex-trabalhadores em turnos. Em pesquisa de Tarquini, Cecchetin e Cariddi (1986) foi observado que o trabalho em turnos pode provocar uma mudança importante no sistema de secreção gástrica e acidopepsina, causando dificuldades na digestão de certos alimentos ingeridos em determinados períodos do dia. (...) Segundo Rutenfraz, Haider e Koller (1985), o trabalho em turnos deve ser incluído como fator de risco no surgimento da úlcera duodenal, aumentando as possibilidades de surgimento de doenças (...) o trabalho em turnos pode aumentar a freqüência da úlcera (gástrica ou duodenal) da seguinte maneira: os padrões de sono alterados produzem marcadas mudanças nos padrões secretórios da adrenal, ritmicidade pineal, secreções de enzimas digestivas, alterações na alimentação e motilidade gastrointestinal”8.
O problema de relacionamento sócio-familiar do trabalhador é outra conseqüência dos turnos ininterruptos de revezamento.
O trabalhador submetido ao regime de turnos ininterruptos de revezamento, normalmente sente dificuldade em adequar os períodos de trabalho (fixados de acordo com as escalas da empresa) com a participação nas atividades culturais, familiares e de lazer, o que favorece o seu afastamento dos familiares e amigos.
O fato de o trabalhador encontrar-se de folga em diferentes períodos do dia ou da noite, impede a sua efetiva participação nos afazeres domésticos, como também compromete sua presença regular em cursos e eventos culturais.
Os efeitos específicos do isolamento sócio-familiar nos trabalhadores petroquímicos aposentados que laboraram em turnos ininterruptos de revezamento foi objeto da pesquisa realizada por Maria José Giannella Cataldi, sendo “constatado que a grande maioria dos aludidos empregados só tinham conhecimento da data do seu nascimento, e não sabiam as datas dos respectivos casamentos, do aniversário da esposa dos filhos etc. Após tal constatação, perguntamos à razão desse esquecimento, e todos responderam que o trabalho em turnos de revezamento ininterrupto após longo período traz esse tipo de esquecimento, pois os mesmos trabalharam ininterruptamente em datas que para a sociedade geral tinha um significado, mas que para eles só foi mais um dia de labor. Quantos dias de Natal eles trabalharam normalmente. E, assim, verificou-se que esses empregados estão à margem dos acontecimentos sociais e familiares”9.
Maria José Giannella Cataldi destaca que “estudando a opinião de esposas de trabalhadores em turnos com longos rodízios, numa fundição, notou que havia grande impopularidade desse arranjo de trabalho entre elas; a principal razão é que não conseguiram ajustar sua rotina e hábitos domésticos aos seus padrões de vida. Suas principais queixas eram a respeito dos fins de semana, quando ficavam sozinhas, enquanto o marido trabalhava”10.
A análise do regime de turnos ininterruptos de revezamento, portanto, demonstra que as suas conseqüências são severamente danosas para o trabalhador, seja no seu aspecto individual como coletivo, inclusive com flagrante violação do ordenamento constitucional brasileiro.
4 - Turnos ininterruptos de revezamento: caracterização como trabalho penoso.
O trabalho penoso foi inserido pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 3.80711, de 26 de agosto de 1960, que estabeleceu as aposentadorias especiais para os trabalhos penosos, insalubres e perigosos.
A Lei nº 7.850, de 23 de outubro de 1989, chegou a considerar como penosa à atividade de telefonista, tendo cessado os seus efeitos com a sua revogação pela Lei nº 9.528, de 10 de dezembro de 1997.
A Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que estabelece o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais, reconheceu, de forma específica, que “o adicional de atividade penosa será devido aos servidores em exercício em zonas de fronteira ou em localidades cujas condições de vida justifiquem, nos termos, condições e limites fixados em regulamento” (art. 71, caput).
A Câmara Municipal de Campinas também aprovou a Lei nº 9.193, de dezembro de 1996, que concedeu “ao servidor e ao empregado público municipal que trabalhe em jornada noturna nos Hospitais Municipais e Prontos Socorros de atendimento permanente” o adicional de penosidade, no percentual de 30% (trinta por cento) sobre a hora noturna trabalhada.
A Carta Magna de 1988 foi a primeira a tratar o trabalho penoso como matéria constitucional, fixando inclusive o adicional de remuneração para as atividades penosas a serem definidas em lei (art. 7º, inciso XXIII12).
Georgenor de Sousa Franco Filho comenta que o reconhecimento constitucional do trabalho penoso chegou a ser questionado na “Assembléia Nacional Constituinte, por ocasião do Projeto de setembro de 1987 (art. 6º, nº XIX). Sua supressão foi proposta por emenda de autoria do Constituinte Ubiratan Spinelli, por entender que, em já sendo difícil conceituar e definir as atividades insalubres e perigosas, pelo seu caráter subjetivo, criar mais um tipo de atividade seria ensejar a ‘confusão’... O parecer do Relator da Comissão de Sistematização Constituinte Bernardo Cabral, no sentido da rejeição da emenda, ressalta a intenção de seu autor, quanto à dificuldade de definição das atividades penosas, mas apontava que a manutenção dessa palavra é indispensável, porque, sem ela, deixaríamos de contemplar as atividades desgastantes”13.
A dificuldade de fixação do verdadeiro sentido de trabalho ou atividade penosa continua a persistir em razão da inexistência da definição legal exigida pelo texto constitucional14.
Etimologicamente, o termo “penoso” é conceituado por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira como o “que causa pena ou sofrimento; que incomoda; que produz dor; doloroso”15.
Na Bíblia, a atividade penosa é mencionada como “a obra que se faz debaixo do sol” (Eclesiastes - Capítulo 2, versículo 17).
Doutrinariamente, Christiane Marques define “trabalho penoso como aquele relacionado à exaustão, ao incômodo, à dor, ao desgaste, à concentração excessiva e à imutabilidade das tarefas desempenhadas que aniquilam o interesse, que leva o trabalhador ao exaurimento de suas energias, extinguindo-lhe o prazer entre a vida laboral e as atividades a serem executadas”16.
Observa-se, portanto, que o trabalho penoso pode ser definido como a atividade em que o trabalhador desempenha excessivo esforço físico e/ou mental, proporcionando desgaste orgânico e debilidade na sua qualidade de vida.
Leny Sato, com base em estudos técnicos sobre a saúde do trabalhador, relacionou como atividades em condições penosas:
“__ esforço físico intenso no levantamento, transporte, movimentação, carga e descarga de objetos, materiais, produtos e peças;
__ posturas incômodas, viciosas e fatigantes; esforços repetitivos;
__ alternância de horários de sono e vigília ou de alimentação;
__ utilização de equipamentos de proteção individual que impeçam o pleno exercício de funções fisiológicas, como tato, audição, respiração, visão, atenção, que leva à sobrecarga física e mental;
__ excessiva atenção ou concentração;
__ contato com o público que acarrete desgaste psíquico;
__ atendimento direto de pessoas em atividades de primeiros socorros, tratamento e reabilitação que acarretem desgaste psíquico;
__ trabalho direto com pessoas em atividades de atenção, desenvolvimento e educação que acarretem desgastes psíquico e físico;
__ confinamento ou isolamento; contato direto com substâncias, objetos ou situações repugnantes e cadáveres humanos e animais;
__ trabalho direto na captura e sacrifício de animais”17.
Constata-se que as atividades relacionadas por Leny Sato fornecem elementos coerentes para elaboração das especificações do trabalho penoso pelo legislador, haja vista que pressupõem o desempenho excessivo do esforço físico e/ou mental do obreiro, como também consideram como elementos intrínsecos o comprometimento da saúde e da qualidade de vida do trabalhador.
A inexistência de lei ordinária que especifique as atividades penosas vem possibilitando, ainda que de forma incipiente, a tipificação das condições de trabalho penoso por instrumentos coletivos e por decisões judiciais.
O acordo coletivo entre a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A - ELETRONORTE e o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas de Água, Energia, Laticínio, Empresa de Habitação e Empresa de Processamento de Dados do Estado do Acre - STIU/AC, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Amapá - STIU/AP, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Amazonas - STIU/AM, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas, nas Atividades de Meio Ambiente e nos Entes de Fiscalização e Regulação dos Serviços Urbanos de Energia Elétrica, Saneamento, Gás e Meio Ambiente no Distrito Federal - STIU/DF, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Maranhão - STIU/MA, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Mato Grosso - STIU/MT, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Pará - STIU/PA, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado de Rondônia - SINDUR/RO, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado de Roraima - STIU/RR, e o Sindicato dos Trabalhadores em Eletricidade do Estado do Tocantins - STEE/TO, é outro exemplo de norma coletiva que concede o adicional de penosidade, no percentual de 15% (quinze por cento) sobre o salário-base acrescido do adicional por tempo de serviço, aos empregados que laboram no regime de turno em escala de revezamento18.
No Estado do Pará, os Sindicatos dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Pará, o Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários no Estado do Pará e o Sindicato dos Engenheiros no Estado do Pará vêm realizando Acordos Coletivos com a Companhia de Saneamento do Estado do Pará - COSANPA, sendo concedido reiteradamente o adicional de penosidade, no percentual de 3% (três por cento) sobre o salário-base, aos empregados submetidos ao turno ininterrupto de revezamento19.
Assim, em razão das conseqüências danosas do turno ininterrupto de revezamento para o trabalhador, seja no seu aspecto individual como coletivo, bem como por se caracterizar como atividade em que o obreiro desempenha excessivo esforço físico e mental, proporcionando desgaste orgânico e debilidade na sua qualidade de vida, entendo que se enquadra perfeitamente como trabalho penoso.
5 - A norma constitucional e a aplicabilidade da Súmula nº 423 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho.
As agressões à saúde e à vida social do trabalhador foram objeto de debates na Assembléia Constituinte de 1988 e justificaram a delimitação da jornada de 06 (seis) horas para os turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, inciso XIV, da Constituição Federal).
Neste aspecto, destaca-se a manifestação na tribuna do deputado João Paulo, no dia da votação em 1º turno no Congresso Nacional da redação do art. 7º, inciso XIV, da Constituição Federal:
“Para oferecer uma sobrevida aos trabalhadores envolvidos no sistema de revezamento de turnos (...) busca-se preservar a vida produtiva desse trabalhador. As doenças como problemas circulatórios, hipertensão, úlceras gástricas, desarranjos psíquicos, uma série de implicações. Além disso, deve-se destacar que acresce a essas questões o desajuste desse trabalhador no seu próprio lar. Raramente esse trabalhador encontra-se com seu cônjuge e com seus filhos, raramente esse trabalhador toma suas refeições juntamente com a família. Na maioria dos casos esse trabalhador não tem uma habitação que lhe propicie o sono necessário para que ele se recupere das jornadas subseqüentes. E, por essa razão, também, muitas vezes surgem atritos familiares, pois os filhos e a própria esposa têm a sua rotina alterada em função desse sistema de revezamento. E evidentemente, que o desajuste social também é uma decorrência. Ele tem o seu lazer prejudicado”20.
Observa-se que o reconhecimento constitucional da jornada de 06 (seis) horas para os turnos ininterruptos de revezamento insere-se na temática dos limites interpretativos próprios do direito laboral.
Verifica-se que o direito do trabalho, objetivando tutelar a relação jurídica desequilibrada mantida entre os donos do capital e a classe trabalhadora, estabeleceu diretrizes protetivas que compensam a debilidade sócio-econômica do obreiro diante do empregador, de modo a propiciar a igualdade jurídica entre os agentes do contrato de trabalho.
Arnaldo Süssekind comenta “que o Direito do Trabalho é um direito especial, que se distingue do direito comum, especialmente porque, enquanto o segundo supõe a igualdade das partes, o primeiro pressupõe uma situação de desigualdade que ele tende a corrigir com outras desigualdades. A necessidade de proteção social aos trabalhadores constitui a raiz sociológica do Direito do Trabalho e é imanente a todo o seu sistema jurídico”21.
Américo Plá Rodriguez preleciona que “todo o Direito do Trabalho nasceu sob o impulso de um propósito de proteção. Se este não tivesse existido, o Direito do Trabalho não teria surgido. Surgiu com o preciso objetivo de equilibrar, com uma desigualdade jurídica favorável, a desigualdade econômica e social que havia nos fatos”22.
Neste contexto, o princípio da proteção do trabalhador23 torna-se a essência do ordenamento laboral, na medida em que, através das suas formas de aplicação (in dubio pro operario; da norma mais favorável e da condição mais benéfica)24, o Estado opõe obstáculos à autonomia da vontade das partes com a fixação das normas de ordem pública.
Amauri Mascaro Nascimento comenta que “a Constituição deve ser interpretada como um conjunto de direitos mínimos e não de direitos máximos, de modo que nela mesma se encontra o comando para que direitos mais favoráveis ao trabalhador venham a ser fixados através da lei ou das convenções coletivas”25.
A norma constitucional, portanto, constitui-se na base jurídica mínima, refletindo o princípio protetor, de modo a impedir que os agentes do pacto laboral venham a livremente dispor sobre todos os aspectos contratuais.
Cabe destacar que a Carta Magna, ao estabelecer as garantias mínimas dos trabalhadores, também valorizou a autonomia privada coletiva como fonte instauradora de normas laborais que possibilitem a melhoria das condições sociais, atribuindo ao sindicato “a defesa dos direitos e interesses coletivos e individuais da categoria” (art. 8º, inciso III).
O texto constitucional fixou 03 (três) casos em que as garantias mínimas podem ser flexibilizadas em prejuízo do trabalhador (art. 7º, incisos VI (redução salário), XIII (redução e compensação de horários) e XIV (fixação da duração da jornada nos turnos ininterruptos de revezamento)), especificando as hipóteses excepcionais em que a negociação coletiva pode resultar em precarização das condições de trabalho.
As normas coletivas constituíram-se em instrumentos legítimos para criar direitos que visem à melhoria das condições sociais dos trabalhadores e para flexibilizar in pejus do direito do trabalhador nos casos excepcionalmente especificados no texto constitucional, porém, neste último aspecto, não se pode deixar de ressaltar que as garantias mínimas dos trabalhadores consagradas pelo texto constitucional, como conquistas sociais provenientes das lutas históricas entre o capital e o trabalho, fundamentando-se no princípio constitucional da proibição de retrocesso social26, peremptoriamente impedem a utilização da tutela sindical como agente desagregador das diretrizes dos direitos sociais consagrados pela Carta Republicana, em especial a saúde e segurança do trabalhador, a teor do art. 1º, incisos I, II, III, IV e V, art. 3º, incisos I, II, III e IV, art. 4º, inciso II, art. 7º, caput, e art. 170, caput.
A preocupação com os efeitos lesivos do turno ininterrupto de revezamento na vida do trabalhador vem sendo assimilada pelo Poder Judiciário, inclusive a jurisprudência majoritária passou considerar plenamente compatível a concessão do intervalo intrajornada e interjornada para descanso e alimentação do operário no sistema de turno ininterrupto de revezamento, conforme estabelece a Súmula nº 36027 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho.
Entretanto, contrariando os seus julgados que asseveram relatividade da norma coletiva e a indisponibilidade do direito a saúde e segurança no ambiente de trabalho, o Colendo Tribunal Superior do Trabalho consagrou na Súmula 423 o entendimento que reconhece a possibilidade de elevação da jornada de trabalho nos turnos ininterruptos de revezamento por meio de norma coletiva sem a respectiva contraprestação do labor extraordinário.
A Súmula nº 423 possui a seguinte redação:
“TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO. FIXAÇÃO DE JORNADA DE TRABALHO MEDIANTE NEGOCIAÇÃO COLETIIVA. Estabelecida jornada superior a seis horas e limitada a oito por meio de regular negociação coletiva, os empregados submetidos a turnos ininterruptos de revezamento não têm direito ao pagamento das 7ª e 8ª horas como extras (Conversão da Orientação Jurisprudencial nº 169 da SBDI-I - Res. 139/2006 - DJ 10.10.06)”.
A partir da análise do tratamento constitucional do labor em turno ininterrupto de revezamento, das conseqüências danosas desta jornada ao trabalhador (âmbito individual e coletivo) e da estruturação do ordenamento jurídico brasileiro, verifica-se que a interpretação sistemática do art. 7º, inciso XIV, da Constituição Federal, reconhece a jornada máxima de 06 (seis) horas por dia, de modo que, ousando em discordar da premissa estabelecida pela Súmula nº 423, do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, entendendo que a sua majoração apenas é permitida em caráter excepcional e por meio de negociação coletiva, porém, neste caso, mediante pagamento ao obreiro da remuneração pelo labor extraordinário após a sexta hora de trabalho.
Francisco Meton Marques de Lima comenta que “a jornada de seis horas para o turno ininterrupto de revezamento comporta flexibilidade no sentido ascendente, isto é, pode ser aumentada, mediante negociação coletiva de trabalho. Mas esse aumento deve ser remunerado como extraordinário”, ressaltando que na Assembléia Constituinte “o texto aprovado no primeiro turno dizia ‘jornada máxima de seis horas’. No segundo turno foi excluída a palavra máxima. Isto permitiu a flexibilização da jornada mediante negociação coletiva. Porém, entendemos que o trabalho nesse sistema, superior a seis horas por dia, gera direito do empregado à remuneração de horas extras”28.
Observa-se que a interpretação restritiva do art. 7º, inciso XIV, da Constituição Federal, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa, na proibição do retrocesso social e no direito de redução dos riscos inerentes ao trabalho.
A elevação da jornada de trabalho em turnos ininterrupto de revezamento para 08 (oito) horas com a percepção do mesmo salário constitui-se verdadeiro retrocesso social, na medida em que possibilita o retorna das jornadas de trabalho extenuantes que são próprias da Revolução Industrial do Século XVIII, como também possibilita a elevação do desgaste físico e mental do trabalhador em razão do aumento do tempo de exposição do obreiro aos riscos no ambiente laboral (art. 4º, da CLT), de modo a infringir as disposições constitucionais que determinam a “redução dos riscos inerentes ao trabalho” (art. 7º, inciso XXII).
O trabalhador, ao permanecer recebendo a mesma remuneração da jornada de 06 (seis) horas, porém cumprindo turnos ininterruptos de revezamento de 08 (oito) horas, propicia o enriquecimento sem causa do empregador na medida em que o trabalhador disponibiliza sua atividade profissional sem a respectiva percepção da contraprestação (a remuneração), o que é vedado pelo ordenamento jurídico (arts. 3º e 457, da CLT, e Lei nº 10.803/2003).
O reconhecimento da jornada máxima de 6 (seis) horas no labor em turno ininterrupto de revezamento e da possibilidade, em caso excepcional, da sua elevação por meio de norma coletiva mediante a garantia da contraprestação do labor extraordinário, permite a elevação da remuneração do trabalhador e dos respectivos encargos sociais, o que força o empregador a buscar jornada de trabalho com menor agressividade à saúde do obreiro.
Cabe registrar que o magistrado possui responsabilidade no direcionamento das condutas sociais, por isso, diante de uma pauta axiológica, tem a obrigação de buscar o verdadeiro sentimento de justiça assegurado pela Constituição Federal, de modo a garantir a efetividade dos direitos constitucionais indisponíveis, dentre os quais se inclui a saúde e segurança do trabalhador.
Neste sentido, considerando a garantia constitucional de “redução dos riscos inerentes ao trabalho” (art. 7º, inciso XXII), a vedação legal do enriquecimento sem causa (arts. 3º e 457, da CLT, e Lei nº 10.803/2003), o Princípio da Proibição do Retrocesso Social e, ainda, a obrigatoriedade do intérprete da norma buscar os fins sociais e o bem comum (art. 5º, da Lei de Introdução do Código Civil), entendo que a Súmula nº 423 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho não deve ser aplicada pelos operadores do direito em razão de violar a unidade, o equilíbrio e a harmonia da ordem jurídica.
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TODESCHINI, Remigio. É Aplicável o Artigo 7º, XIV da Constituição para os Turnos Fixos?. São Paulo: Revista LTr, nº 65, maio/2001.
Francisco Milton Araújo Júnior é Juiz Federal do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Marabá, Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Pará e membro do Conselho Consultivo da Escola da Magistratura da Justiça do Trabalho da 8ª Região - EMATRA VIII.
Francisco Milton Araújo Júnior
Juiz Federal do Trabalho Titular da 2ª VT de Marabá no TRT/PA - 8ª Região
“Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio do nosso Senhor Jesus Cristo; por intermédio de quem obtivemos igual acesso, pela fé, a esta graça na qual estamos firmes, e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus.
E não somente isto, mas também nos gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança.
Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Romanos - Capítulo 5, v.1/5).
1 - Definição de jornada de trabalho.
Originalmente, jornada corresponde ao lapso temporal diário, referindo-se à noção de dia, inclusive no italiano corresponde a giornata (giorno - dia) e no francês a journée (jour - dia), sendo conceituada por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira como “marcha ou caminho que se faz em um dia; viagem por terra; ação ou expedição militar; duração do trabalho diário”1.
Utilizando-se o sentido original pode-se definir jornada de trabalho, no sentido estrito, como o lapso temporal diário em que o trabalhador se coloca à disposição do empregador em razão do contrato de trabalho, executando suas atividades ou aguardando ordens.
Atualmente o termo jornada de trabalho vem sendo utilizado de forma mais ampla, inclusive o próprio legislador vem utilizando a expressão jornada semanal (“à soma das jornadas semanais de trabalho” art. 59, parágrafo segundo, da CLT), para designar o lapso temporal semanal em que o empregado fica à disposição do empregador, podendo estar laborando ou aguardando ordens.
Verifica-se, portanto, que o termo jornada de trabalho é utilizado como sinônimo de duração do trabalho, abrangendo o lapso temporal de efetivo trabalho ou de simples disposição, podendo ser utilizado para mensurar o labor diário (jornada diária), semanal (jornada semanal) ou mensal (jornada mensal).
A jornada de trabalho normal é o tempo máximo previsto para a execução das atividades laborais num determinado período (dia, semana, mês ou ano), devendo observar o equilíbrio entre o desgaste físico-mental e restauração das energias orgânicas do trabalhador.
Com base no equilíbrio entre o desenvolvimento das atividades produtivas e o bem-estar do trabalhador, o ordenamento jurídico brasileiro, através da Constituição de 1988 (art. 8º, inciso XIII), consagrou como jornada de trabalho máxima de 08 (oito) horas por dia e de 44 (quarenta e quatro) horas semanais, facultando a compensação de horários e a redução da jornada mediante acordo ou norma coletiva.
A fixação pela Carta de 1988 da jornada de trabalho serve como parâmetro limitativo de tempo máximo para a execução das atividades laborais em geral, não impedindo, portanto, que seja estabelecido, através de acordo (individual ou coletivo) ou de ato unilateral do empregador (através do regulamento da empresa), jornada de trabalho inferior.
Ressalta-se que, determinadas categorias profissionais2, em razão de estarem submetidas a condições especiais de labor, possuem jornada de trabalho reduzida como forma de manter o equilíbrio entre a atividade laboral e a saúde do obreiro.
2 - Turnos ininterruptos de revezamento: caracterização jurídica.
Etimologicamente, a palavra turno, consoante De Plácido e Silva, advém do “francês tours (volta, giro, circuito) e exprime a ordem utilizada para o revezamento, ou a alteração, no exercício, ou no desempenho de um cargo (...) o que se faz alternada, ou revezadamente, de modo que as substituições se vão operando por turno, ou pela convocação daquele que está em sua vez”3.
A essência etimológica da palavra se amolda perfeitamente à caracterização jurídica do instituto epigrafado. Nesse sentido, José Augusto Rodrigues Pinto e Rodolfo Pamplona Filho conceituam turnos ininterruptos de revezamento como o “sistema de utilização do trabalho na empresa, consistente em dividir os empregados em grupos, turmas ou equipes que se revezam no local da prestação, em horários diferentes, com redução constitucional da jornada ordinária, de modo a permitir a continuidade absoluta da atividade econômica”4.
O sistema de turnos ininterruptos de revezamento se caracteriza pela existência concomitante dos seguintes fatores: turnos (existência de turmas de empregados previamente escalados), revezamento (ocorrência de alternância entre os turnos de trabalhadores para desempenhar suas atividades no período diurno, noturno ou misto, podendo variar diariamente, semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente) e ininterrupção (não dissolução de continuidade nas atividades laborais, no período de 24 (vinte e quatro) horas, sem prejuízo da existência de intervalos intrajornada e interjornada destinados ao repouso e a alimentação do trabalhador).
3 - Turnos ininterruptos de revezamento: prejuízos ao trabalhador.
As constantes variações no horário de trabalho, alimentação, repouso e lazer, decorrentes do regime de turnos ininterrupto de revezamento, vêm causando severos distúrbios na saúde do trabalhador, com a afetação principalmente do sistema nervoso e do sistema digestivo, como também vêm proporcionando ao trabalhador diversos problemas no relacionamento sócio-familiar.
As anomalias no sistema nervoso, causadas pelo labor em turnos ininterruptos de revezamento, normalmente se relacionam com os distúrbios do sono.
Sobre os efeitos fisiológicos do sono, Arthur C. Guyton afirma que “a vigília prolongada está freqüentemente associada a uma disfunção progressiva da mente e, também, provoca atividades comportamentais anormais. Todos nós estamos familiarizados com a maior lentidão de pensamento que ocorre no final de um prolongado período de vigília, mas além disso, uma pessoa pode tornar-se irritadiça ou até psicótica após a vigília forçada por período prolongado (...). Por isso, na ausência de qualquer valor funcional do sono, definitivamente demonstrado, poderíamos postular que o principal valor do sono é o de restaurar o equilíbrio natural entre os centros neurais”5.
As mudanças no horário de trabalho, repouso e alimentação, freqüentes nos regimes de turnos ininterruptos de revezamento, propiciam dificuldades orgânicas no gerenciamento dos ciclos fisiológicos e acarretam o alongamento dos períodos de vigília e a diminuição dos períodos de sono.
Com a constância no aumento dos períodos de vigília em prejuízo do equilíbrio natural dos centros neurais, a ocorrência dos distúrbios no sono do trabalhador passa a se manifestar através de insônia, irritabilidade, sonolência excessiva durante o horário de trabalho (seja este no período matutino, vespertino ou noturno) ou fadiga crônica.
Neste sentido, Frida Marina Fischer e Renato Rocha Lieber comentam que a “os sintomas mais freqüentes do mal-estar percebido incluem fadiga, variações de humor, nervosismo, dificuldades em dormir, falta ou aumento do apetite, dificuldades em realizar um trabalho habitual, perturbações de memória etc. A duração da dessincronização biológica depende dos esquemas de turnos: quanto maior o número de jornadas de trabalho que obriguem o trabalhador a inverter seu ciclo de atividade-repouso, maior o número de dias necessários para conseguir uma inversão dos ritmos biológicos”6.
As horas irregulares dos turnos ininterruptos de revezamento também provocam alterações nos hábitos alimentares do trabalhador, com aumento ou diminuição do apetite, passando a realizar vários lanches durante o dia e a noite em detrimento das refeições regulares (café da manhã, almoço e jantar), o que favorece o aparecimento de distúrbios gastrointestinais, como azia, gastrite e úlcera.
Hadengue afirma que “a queimação epigástrica é uma manifestação característica entre trabalhadores que modificam seu período de trabalho, e esse sintoma perdura por alguns dias, desaparecendo e novamente reaparece, quando ocorre a nova troca de horários de trabalho. Nas equipes noturnas, certos indivíduos não atingem a fase de adaptação”7.
Frida Marina Fischer e Renato Rocha Lieber, analisando diversas pesquisas sobre as alterações gastrointestinais, noticiam que o “trabalho de Segawa e cols., publicado em 1987, que relata inquérito realizado com 11.657 trabalhadores japoneses. Os autores constataram que a úlcera gástrica era duas vezes mais freqüente entre os trabalhadores em turnos do que entre diurnos; este estudo também revela que parece haver uma maior capacidade ulcerogênica residual entre os ex-trabalhadores em turnos. Em pesquisa de Tarquini, Cecchetin e Cariddi (1986) foi observado que o trabalho em turnos pode provocar uma mudança importante no sistema de secreção gástrica e acidopepsina, causando dificuldades na digestão de certos alimentos ingeridos em determinados períodos do dia. (...) Segundo Rutenfraz, Haider e Koller (1985), o trabalho em turnos deve ser incluído como fator de risco no surgimento da úlcera duodenal, aumentando as possibilidades de surgimento de doenças (...) o trabalho em turnos pode aumentar a freqüência da úlcera (gástrica ou duodenal) da seguinte maneira: os padrões de sono alterados produzem marcadas mudanças nos padrões secretórios da adrenal, ritmicidade pineal, secreções de enzimas digestivas, alterações na alimentação e motilidade gastrointestinal”8.
O problema de relacionamento sócio-familiar do trabalhador é outra conseqüência dos turnos ininterruptos de revezamento.
O trabalhador submetido ao regime de turnos ininterruptos de revezamento, normalmente sente dificuldade em adequar os períodos de trabalho (fixados de acordo com as escalas da empresa) com a participação nas atividades culturais, familiares e de lazer, o que favorece o seu afastamento dos familiares e amigos.
O fato de o trabalhador encontrar-se de folga em diferentes períodos do dia ou da noite, impede a sua efetiva participação nos afazeres domésticos, como também compromete sua presença regular em cursos e eventos culturais.
Os efeitos específicos do isolamento sócio-familiar nos trabalhadores petroquímicos aposentados que laboraram em turnos ininterruptos de revezamento foi objeto da pesquisa realizada por Maria José Giannella Cataldi, sendo “constatado que a grande maioria dos aludidos empregados só tinham conhecimento da data do seu nascimento, e não sabiam as datas dos respectivos casamentos, do aniversário da esposa dos filhos etc. Após tal constatação, perguntamos à razão desse esquecimento, e todos responderam que o trabalho em turnos de revezamento ininterrupto após longo período traz esse tipo de esquecimento, pois os mesmos trabalharam ininterruptamente em datas que para a sociedade geral tinha um significado, mas que para eles só foi mais um dia de labor. Quantos dias de Natal eles trabalharam normalmente. E, assim, verificou-se que esses empregados estão à margem dos acontecimentos sociais e familiares”9.
Maria José Giannella Cataldi destaca que “estudando a opinião de esposas de trabalhadores em turnos com longos rodízios, numa fundição, notou que havia grande impopularidade desse arranjo de trabalho entre elas; a principal razão é que não conseguiram ajustar sua rotina e hábitos domésticos aos seus padrões de vida. Suas principais queixas eram a respeito dos fins de semana, quando ficavam sozinhas, enquanto o marido trabalhava”10.
A análise do regime de turnos ininterruptos de revezamento, portanto, demonstra que as suas conseqüências são severamente danosas para o trabalhador, seja no seu aspecto individual como coletivo, inclusive com flagrante violação do ordenamento constitucional brasileiro.
4 - Turnos ininterruptos de revezamento: caracterização como trabalho penoso.
O trabalho penoso foi inserido pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 3.80711, de 26 de agosto de 1960, que estabeleceu as aposentadorias especiais para os trabalhos penosos, insalubres e perigosos.
A Lei nº 7.850, de 23 de outubro de 1989, chegou a considerar como penosa à atividade de telefonista, tendo cessado os seus efeitos com a sua revogação pela Lei nº 9.528, de 10 de dezembro de 1997.
A Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que estabelece o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais, reconheceu, de forma específica, que “o adicional de atividade penosa será devido aos servidores em exercício em zonas de fronteira ou em localidades cujas condições de vida justifiquem, nos termos, condições e limites fixados em regulamento” (art. 71, caput).
A Câmara Municipal de Campinas também aprovou a Lei nº 9.193, de dezembro de 1996, que concedeu “ao servidor e ao empregado público municipal que trabalhe em jornada noturna nos Hospitais Municipais e Prontos Socorros de atendimento permanente” o adicional de penosidade, no percentual de 30% (trinta por cento) sobre a hora noturna trabalhada.
A Carta Magna de 1988 foi a primeira a tratar o trabalho penoso como matéria constitucional, fixando inclusive o adicional de remuneração para as atividades penosas a serem definidas em lei (art. 7º, inciso XXIII12).
Georgenor de Sousa Franco Filho comenta que o reconhecimento constitucional do trabalho penoso chegou a ser questionado na “Assembléia Nacional Constituinte, por ocasião do Projeto de setembro de 1987 (art. 6º, nº XIX). Sua supressão foi proposta por emenda de autoria do Constituinte Ubiratan Spinelli, por entender que, em já sendo difícil conceituar e definir as atividades insalubres e perigosas, pelo seu caráter subjetivo, criar mais um tipo de atividade seria ensejar a ‘confusão’... O parecer do Relator da Comissão de Sistematização Constituinte Bernardo Cabral, no sentido da rejeição da emenda, ressalta a intenção de seu autor, quanto à dificuldade de definição das atividades penosas, mas apontava que a manutenção dessa palavra é indispensável, porque, sem ela, deixaríamos de contemplar as atividades desgastantes”13.
A dificuldade de fixação do verdadeiro sentido de trabalho ou atividade penosa continua a persistir em razão da inexistência da definição legal exigida pelo texto constitucional14.
Etimologicamente, o termo “penoso” é conceituado por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira como o “que causa pena ou sofrimento; que incomoda; que produz dor; doloroso”15.
Na Bíblia, a atividade penosa é mencionada como “a obra que se faz debaixo do sol” (Eclesiastes - Capítulo 2, versículo 17).
Doutrinariamente, Christiane Marques define “trabalho penoso como aquele relacionado à exaustão, ao incômodo, à dor, ao desgaste, à concentração excessiva e à imutabilidade das tarefas desempenhadas que aniquilam o interesse, que leva o trabalhador ao exaurimento de suas energias, extinguindo-lhe o prazer entre a vida laboral e as atividades a serem executadas”16.
Observa-se, portanto, que o trabalho penoso pode ser definido como a atividade em que o trabalhador desempenha excessivo esforço físico e/ou mental, proporcionando desgaste orgânico e debilidade na sua qualidade de vida.
Leny Sato, com base em estudos técnicos sobre a saúde do trabalhador, relacionou como atividades em condições penosas:
“__ esforço físico intenso no levantamento, transporte, movimentação, carga e descarga de objetos, materiais, produtos e peças;
__ posturas incômodas, viciosas e fatigantes; esforços repetitivos;
__ alternância de horários de sono e vigília ou de alimentação;
__ utilização de equipamentos de proteção individual que impeçam o pleno exercício de funções fisiológicas, como tato, audição, respiração, visão, atenção, que leva à sobrecarga física e mental;
__ excessiva atenção ou concentração;
__ contato com o público que acarrete desgaste psíquico;
__ atendimento direto de pessoas em atividades de primeiros socorros, tratamento e reabilitação que acarretem desgaste psíquico;
__ trabalho direto com pessoas em atividades de atenção, desenvolvimento e educação que acarretem desgastes psíquico e físico;
__ confinamento ou isolamento; contato direto com substâncias, objetos ou situações repugnantes e cadáveres humanos e animais;
__ trabalho direto na captura e sacrifício de animais”17.
Constata-se que as atividades relacionadas por Leny Sato fornecem elementos coerentes para elaboração das especificações do trabalho penoso pelo legislador, haja vista que pressupõem o desempenho excessivo do esforço físico e/ou mental do obreiro, como também consideram como elementos intrínsecos o comprometimento da saúde e da qualidade de vida do trabalhador.
A inexistência de lei ordinária que especifique as atividades penosas vem possibilitando, ainda que de forma incipiente, a tipificação das condições de trabalho penoso por instrumentos coletivos e por decisões judiciais.
O acordo coletivo entre a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil S/A - ELETRONORTE e o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas de Água, Energia, Laticínio, Empresa de Habitação e Empresa de Processamento de Dados do Estado do Acre - STIU/AC, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Amapá - STIU/AP, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Amazonas - STIU/AM, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas, nas Atividades de Meio Ambiente e nos Entes de Fiscalização e Regulação dos Serviços Urbanos de Energia Elétrica, Saneamento, Gás e Meio Ambiente no Distrito Federal - STIU/DF, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Maranhão - STIU/MA, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Mato Grosso - STIU/MT, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Pará - STIU/PA, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado de Rondônia - SINDUR/RO, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado de Roraima - STIU/RR, e o Sindicato dos Trabalhadores em Eletricidade do Estado do Tocantins - STEE/TO, é outro exemplo de norma coletiva que concede o adicional de penosidade, no percentual de 15% (quinze por cento) sobre o salário-base acrescido do adicional por tempo de serviço, aos empregados que laboram no regime de turno em escala de revezamento18.
No Estado do Pará, os Sindicatos dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas do Estado do Pará, o Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários no Estado do Pará e o Sindicato dos Engenheiros no Estado do Pará vêm realizando Acordos Coletivos com a Companhia de Saneamento do Estado do Pará - COSANPA, sendo concedido reiteradamente o adicional de penosidade, no percentual de 3% (três por cento) sobre o salário-base, aos empregados submetidos ao turno ininterrupto de revezamento19.
Assim, em razão das conseqüências danosas do turno ininterrupto de revezamento para o trabalhador, seja no seu aspecto individual como coletivo, bem como por se caracterizar como atividade em que o obreiro desempenha excessivo esforço físico e mental, proporcionando desgaste orgânico e debilidade na sua qualidade de vida, entendo que se enquadra perfeitamente como trabalho penoso.
5 - A norma constitucional e a aplicabilidade da Súmula nº 423 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho.
As agressões à saúde e à vida social do trabalhador foram objeto de debates na Assembléia Constituinte de 1988 e justificaram a delimitação da jornada de 06 (seis) horas para os turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, inciso XIV, da Constituição Federal).
Neste aspecto, destaca-se a manifestação na tribuna do deputado João Paulo, no dia da votação em 1º turno no Congresso Nacional da redação do art. 7º, inciso XIV, da Constituição Federal:
“Para oferecer uma sobrevida aos trabalhadores envolvidos no sistema de revezamento de turnos (...) busca-se preservar a vida produtiva desse trabalhador. As doenças como problemas circulatórios, hipertensão, úlceras gástricas, desarranjos psíquicos, uma série de implicações. Além disso, deve-se destacar que acresce a essas questões o desajuste desse trabalhador no seu próprio lar. Raramente esse trabalhador encontra-se com seu cônjuge e com seus filhos, raramente esse trabalhador toma suas refeições juntamente com a família. Na maioria dos casos esse trabalhador não tem uma habitação que lhe propicie o sono necessário para que ele se recupere das jornadas subseqüentes. E, por essa razão, também, muitas vezes surgem atritos familiares, pois os filhos e a própria esposa têm a sua rotina alterada em função desse sistema de revezamento. E evidentemente, que o desajuste social também é uma decorrência. Ele tem o seu lazer prejudicado”20.
Observa-se que o reconhecimento constitucional da jornada de 06 (seis) horas para os turnos ininterruptos de revezamento insere-se na temática dos limites interpretativos próprios do direito laboral.
Verifica-se que o direito do trabalho, objetivando tutelar a relação jurídica desequilibrada mantida entre os donos do capital e a classe trabalhadora, estabeleceu diretrizes protetivas que compensam a debilidade sócio-econômica do obreiro diante do empregador, de modo a propiciar a igualdade jurídica entre os agentes do contrato de trabalho.
Arnaldo Süssekind comenta “que o Direito do Trabalho é um direito especial, que se distingue do direito comum, especialmente porque, enquanto o segundo supõe a igualdade das partes, o primeiro pressupõe uma situação de desigualdade que ele tende a corrigir com outras desigualdades. A necessidade de proteção social aos trabalhadores constitui a raiz sociológica do Direito do Trabalho e é imanente a todo o seu sistema jurídico”21.
Américo Plá Rodriguez preleciona que “todo o Direito do Trabalho nasceu sob o impulso de um propósito de proteção. Se este não tivesse existido, o Direito do Trabalho não teria surgido. Surgiu com o preciso objetivo de equilibrar, com uma desigualdade jurídica favorável, a desigualdade econômica e social que havia nos fatos”22.
Neste contexto, o princípio da proteção do trabalhador23 torna-se a essência do ordenamento laboral, na medida em que, através das suas formas de aplicação (in dubio pro operario; da norma mais favorável e da condição mais benéfica)24, o Estado opõe obstáculos à autonomia da vontade das partes com a fixação das normas de ordem pública.
Amauri Mascaro Nascimento comenta que “a Constituição deve ser interpretada como um conjunto de direitos mínimos e não de direitos máximos, de modo que nela mesma se encontra o comando para que direitos mais favoráveis ao trabalhador venham a ser fixados através da lei ou das convenções coletivas”25.
A norma constitucional, portanto, constitui-se na base jurídica mínima, refletindo o princípio protetor, de modo a impedir que os agentes do pacto laboral venham a livremente dispor sobre todos os aspectos contratuais.
Cabe destacar que a Carta Magna, ao estabelecer as garantias mínimas dos trabalhadores, também valorizou a autonomia privada coletiva como fonte instauradora de normas laborais que possibilitem a melhoria das condições sociais, atribuindo ao sindicato “a defesa dos direitos e interesses coletivos e individuais da categoria” (art. 8º, inciso III).
O texto constitucional fixou 03 (três) casos em que as garantias mínimas podem ser flexibilizadas em prejuízo do trabalhador (art. 7º, incisos VI (redução salário), XIII (redução e compensação de horários) e XIV (fixação da duração da jornada nos turnos ininterruptos de revezamento)), especificando as hipóteses excepcionais em que a negociação coletiva pode resultar em precarização das condições de trabalho.
As normas coletivas constituíram-se em instrumentos legítimos para criar direitos que visem à melhoria das condições sociais dos trabalhadores e para flexibilizar in pejus do direito do trabalhador nos casos excepcionalmente especificados no texto constitucional, porém, neste último aspecto, não se pode deixar de ressaltar que as garantias mínimas dos trabalhadores consagradas pelo texto constitucional, como conquistas sociais provenientes das lutas históricas entre o capital e o trabalho, fundamentando-se no princípio constitucional da proibição de retrocesso social26, peremptoriamente impedem a utilização da tutela sindical como agente desagregador das diretrizes dos direitos sociais consagrados pela Carta Republicana, em especial a saúde e segurança do trabalhador, a teor do art. 1º, incisos I, II, III, IV e V, art. 3º, incisos I, II, III e IV, art. 4º, inciso II, art. 7º, caput, e art. 170, caput.
A preocupação com os efeitos lesivos do turno ininterrupto de revezamento na vida do trabalhador vem sendo assimilada pelo Poder Judiciário, inclusive a jurisprudência majoritária passou considerar plenamente compatível a concessão do intervalo intrajornada e interjornada para descanso e alimentação do operário no sistema de turno ininterrupto de revezamento, conforme estabelece a Súmula nº 36027 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho.
Entretanto, contrariando os seus julgados que asseveram relatividade da norma coletiva e a indisponibilidade do direito a saúde e segurança no ambiente de trabalho, o Colendo Tribunal Superior do Trabalho consagrou na Súmula 423 o entendimento que reconhece a possibilidade de elevação da jornada de trabalho nos turnos ininterruptos de revezamento por meio de norma coletiva sem a respectiva contraprestação do labor extraordinário.
A Súmula nº 423 possui a seguinte redação:
“TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO. FIXAÇÃO DE JORNADA DE TRABALHO MEDIANTE NEGOCIAÇÃO COLETIIVA. Estabelecida jornada superior a seis horas e limitada a oito por meio de regular negociação coletiva, os empregados submetidos a turnos ininterruptos de revezamento não têm direito ao pagamento das 7ª e 8ª horas como extras (Conversão da Orientação Jurisprudencial nº 169 da SBDI-I - Res. 139/2006 - DJ 10.10.06)”.
A partir da análise do tratamento constitucional do labor em turno ininterrupto de revezamento, das conseqüências danosas desta jornada ao trabalhador (âmbito individual e coletivo) e da estruturação do ordenamento jurídico brasileiro, verifica-se que a interpretação sistemática do art. 7º, inciso XIV, da Constituição Federal, reconhece a jornada máxima de 06 (seis) horas por dia, de modo que, ousando em discordar da premissa estabelecida pela Súmula nº 423, do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, entendendo que a sua majoração apenas é permitida em caráter excepcional e por meio de negociação coletiva, porém, neste caso, mediante pagamento ao obreiro da remuneração pelo labor extraordinário após a sexta hora de trabalho.
Francisco Meton Marques de Lima comenta que “a jornada de seis horas para o turno ininterrupto de revezamento comporta flexibilidade no sentido ascendente, isto é, pode ser aumentada, mediante negociação coletiva de trabalho. Mas esse aumento deve ser remunerado como extraordinário”, ressaltando que na Assembléia Constituinte “o texto aprovado no primeiro turno dizia ‘jornada máxima de seis horas’. No segundo turno foi excluída a palavra máxima. Isto permitiu a flexibilização da jornada mediante negociação coletiva. Porém, entendemos que o trabalho nesse sistema, superior a seis horas por dia, gera direito do empregado à remuneração de horas extras”28.
Observa-se que a interpretação restritiva do art. 7º, inciso XIV, da Constituição Federal, fundamenta-se na vedação do enriquecimento sem causa, na proibição do retrocesso social e no direito de redução dos riscos inerentes ao trabalho.
A elevação da jornada de trabalho em turnos ininterrupto de revezamento para 08 (oito) horas com a percepção do mesmo salário constitui-se verdadeiro retrocesso social, na medida em que possibilita o retorna das jornadas de trabalho extenuantes que são próprias da Revolução Industrial do Século XVIII, como também possibilita a elevação do desgaste físico e mental do trabalhador em razão do aumento do tempo de exposição do obreiro aos riscos no ambiente laboral (art. 4º, da CLT), de modo a infringir as disposições constitucionais que determinam a “redução dos riscos inerentes ao trabalho” (art. 7º, inciso XXII).
O trabalhador, ao permanecer recebendo a mesma remuneração da jornada de 06 (seis) horas, porém cumprindo turnos ininterruptos de revezamento de 08 (oito) horas, propicia o enriquecimento sem causa do empregador na medida em que o trabalhador disponibiliza sua atividade profissional sem a respectiva percepção da contraprestação (a remuneração), o que é vedado pelo ordenamento jurídico (arts. 3º e 457, da CLT, e Lei nº 10.803/2003).
O reconhecimento da jornada máxima de 6 (seis) horas no labor em turno ininterrupto de revezamento e da possibilidade, em caso excepcional, da sua elevação por meio de norma coletiva mediante a garantia da contraprestação do labor extraordinário, permite a elevação da remuneração do trabalhador e dos respectivos encargos sociais, o que força o empregador a buscar jornada de trabalho com menor agressividade à saúde do obreiro.
Cabe registrar que o magistrado possui responsabilidade no direcionamento das condutas sociais, por isso, diante de uma pauta axiológica, tem a obrigação de buscar o verdadeiro sentimento de justiça assegurado pela Constituição Federal, de modo a garantir a efetividade dos direitos constitucionais indisponíveis, dentre os quais se inclui a saúde e segurança do trabalhador.
Neste sentido, considerando a garantia constitucional de “redução dos riscos inerentes ao trabalho” (art. 7º, inciso XXII), a vedação legal do enriquecimento sem causa (arts. 3º e 457, da CLT, e Lei nº 10.803/2003), o Princípio da Proibição do Retrocesso Social e, ainda, a obrigatoriedade do intérprete da norma buscar os fins sociais e o bem comum (art. 5º, da Lei de Introdução do Código Civil), entendo que a Súmula nº 423 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho não deve ser aplicada pelos operadores do direito em razão de violar a unidade, o equilíbrio e a harmonia da ordem jurídica.
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Francisco Milton Araújo Júnior é Juiz Federal do Trabalho Titular da 2ª Vara do Trabalho de Marabá, Mestre em Direito do Trabalho pela Universidade Federal do Pará e membro do Conselho Consultivo da Escola da Magistratura da Justiça do Trabalho da 8ª Região - EMATRA VIII.
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